Por Claude Fahd Hajjar*
O legado do mundo árabe medieval à grande
corrente da história da humanidade necessita de uma pesquisa
minuciosa e de uma análise cuidadosa. Os trabalhos do V centenário
do encontro de duas culturas têm como objetivo, iniciar o estudo
deste tema e aprofundar o seu desenvolvimento para que venha a
abranger não apenas a sua anônima contribuição à história do
pensamento científico moderno.
Durante 700 anos, a língua árabe foi a
depositária da memória cultural, científica, artística,
filosófica e comercial da humanidade. Nenhum outro período
histórico anterior a este conseguiu reunir por tanto tempo o saber e
o conhecimento humano e servir de guardião e de transmissor do
legado civilizador da humanidade. Da Ásia à Ásia menor, do norte
da África e por toda a Europa, o Árabe esteve presente, recebeu e
doou cultura e saber, assimilou conhecimento e os transmitiu.
Este trabalho tentará responder a três perguntas
fundamentais:
- Por que coube ao mundo árabe medieval ser o depositário da
herança científica e cultural do Mundo Antigo e ser o seu
transmissor na Idade Média?
- Por que outros povos, e em especial o povo romano, não se
ocuparam destas tarefas?
- Qual foi a real contribuição do Mundo Árabe Medieval à
história do pensamento científico moderno?
Primeira questão: Por que coube ao mundo árabe medieval ser o depositário da herança científica e cultural do Mundo Antigo e ser o seu transmissor na Idade Média?
O primeiro fator que determinou e impulsionou a atividade
científica do mundo Árabe medieval, foi o perfil psicológico do
conquistador árabe da Península, isto é, o guerreiro, o
desbravador, o lutador, características que se somaram à história
pregressa da região da Síria milenar, cujo inconsciente coletivo
carrega a amálgama do acervo cultural de diferentes povos, como o da
Pérsia, da Índia, do Egito, e da Grécia antiga.
O segundo fator foi a própria religião Islâmica e o legado do
Alcorão que estimulou o interesse científico, pois orienta os fiéis
a observar o céu e a terra, para encontrar na natureza provas em
favor da fé. A tradição Islâmica, não se cansa de elogiar a
ciência.
Encontramos no “Hadisse” uma série de recomendações
concernentes à medicina a remédios e à legitimidade de usá-los.
Estas recomendações foram utilizadas pelos intelectuais árabes
para justificarem sua atividade e alimentar sua sede de saber,
investigar e assimilar novos conhecimentos, principalmente na
primeira fase da expansão árabe onde cada nova região conquistada
possuía segredos e mistérios a serem desvendados e nossos
conhecimentos a serem apreendidos.
Outro fator, é ser o herdeiro da Grécia Antiga, o que constituí
mais que um motivo de honra para a civilização do mundo Árabe
Medieval – significa um alto nível de consciência de si e da
aceitação de sua missão de mantendedores e de divulgadores da
mentalidade e do patrimônio científico daquele povo.
Outro fator decisivo desse progresso científico foi a consciência
e vontade na utilização da energia positiva que emanava deles,
novos vencedores. Na busca da assimilação e do desenvolvimento de
todo acervo científico e cultural da Grécia antiga.
O processo, a continuidade, a utilização da potência e da força
do vencedor, a verdadeira consciência que homem e natureza devem ser
estudados e compreendidos para forjarem um mundo melhor. Tanto o
Estado Civil quanto o Estado religioso, aliados aos detentores do
poder econômico, não mediram investimentos para atualizar,
traduzir, divulgar, e desenvolver o pensamento científico da Grécia
Antiga.
Segunda Questão: Por que outros povos, e em especial o povo
Romano não se encarregou desta tarefa?
Considerações sobre algumas diferenças entre o Império Romano
e o Império Árabe, no que diz respeito à ciência e filosofia.
O Império Romano se destacou pelas grandes conquistas, pela
potência e extensão de seus domínios. Foi um construtor de marcos
arquitetônicos de estílo inconfundível, nos legou monumentos
importantes, estimulou as trocas comerciais, unificou interesses na
África, no Mediterraneo e Oriente Próximo.
Foi um Império legislador, regendo a sociedade civil através
da lei e do direito. A organização do estado e a representação
democrática do povo através do Senado e das Câmaras livres foi
instituída durante este Império.
A produção agrícola, o cultivo da terra, enfim toda a parte
prática do cotidiano, o povo romano possuía e desenvolvia. Porém o
imaginativo, o projetivo, o ideativo, o teórico, o científico,
estes atributos faltaram àquele povo Romano.
Ciência e filosofia são áreas que necessitam dos atributos da
reflexão, teorização, e projeção simbólica. Estas áreas
necessitam de questionamentos e de indagações que transcendem o
imediato. A especulação científica e filosófica requer a crença
no amanhã, requer ainda uma capacidade de pensar e refletir o hoje
possa nos conduzir a nova conquista no amanhã. A natureza prática e
imediatista do povo Romano e de seus governantes, estava distante
disto.
Quando o Império Árabe se expandiu até a Europa no século
VIII, esta já vivia a Idade Média da história da civilização. A
maior parte dos países hoje conhecidos e que formaram a Europa
atual, iniciaram sua condição de Estados no final do século IX,
como França e Alemanha.
A primeira fase da história Árabe muçulmana teve início em 654
e a duração de um século, este foi o período Omaíada cuja
Capital Damascos, foi o centro político e econômico da época.
Foi com o declínio do poder de Damascos e a mudança da sede do
poder para Bagdá, que a dinastia Omaíada mudou-se para a Espanha,
onde desde 711 possuía já domínio e poder. Foram os Árabes da
Síria, e sob a égide dos governantes Omaíadas que se tornaram
senhores da África Setentrional e da Espanha.
Os Califas da Dinastia dos Abassídas dominaram a parte oriental
do Mundo Islâmico durante os 500 anos seguintes.
No início do século IX, conforme Philip Hitty, “setenta e
cinco anos após a fundação de Bagdad, o mundo que lia árabe
conhecia os principais trabalhos filosóficos de Aristóteles, os
mais importantes comentadores neoplatonicos e também as obras
científicas persas e hindus...A influencia grega alcançou seu ponto
mais alto no governo de Al Mahmun. As tendências racionalistas deste
Califa levaram-no aos trabalhos filosóficos gregos, à procura de
justificação para o seu ponto de vista, deque os textos religiosos
devem concordar com o julgamento da razão....”
Para o filósofo francês Alexandre Koiré, “
não basta saber
grego para compreender Aristóteles ou Platão- eis aí um erro
freqüente entre os filólogos clássicos-; é preciso, além disso,
saber filosofia...”
“ Em 830, Al Mahmun estabeleceu em Bagdad sua famosa “Casa da
Sabedoria” uma combinação de biblioteca, academia e escritório
de traduções, que foi, sob vários aspectos, a instituição
educacional mais importante desde a fundação do museu de
Alexandria, na primeira metade do século III antes de cristo”.
Foi no período de Al Mahmun que foram traduzidas as obras de
Galeno,Hipócrates e Dioscórides, Platão e Aristóteles. O
brilhante tradutor Hunayan (Joanício - 809-873) traduziu para o
Siríaco e para o Árabe, quase toda a produção científica de
Galeno.
Os sete livros de anatomia deste autor, perdidos no original
grego, foram felizmente preservados em árabe.
Para Hitty, “...
tudo isto aconteceu numa época em que a Europa
ignorava quase totalmente a ciência e o pensamento dos gregos. Pois,
enquanto AL Rashid e Almahmun estavam estudando as filosofias grega
e persa, seus contemporâneos do Ocidente, Carlos Magno e seus
nobres, estavam engatinhando na arte de escrever os seus nomes”.
Para Koiré, “ A barbárie medieval, econômica e política,
teve como origem... a ruptura de relações entre Oriente e Ocidente,
entre o mundo latino e o mundo grego.
E é o mesmo movimento - a falta de relações com o oriente
helênico - que produziu a barbárie intelectual do ocidente”.
Esta ruptura se deve à ausência e “indiferença quase total
dos Romanos pela ciência e pela filosofia. Os Romanos se interessam
pelas coisas práticas: a agricultura, o direito, a moral. Mas, por
mais que procuremos, em toda a literatura latina clássica, uma obra
científica digna desse nome, não a encontramos; muito menos uma
obra filosófica. Encontraremos, Plínio, Seneca, Cícero ou
Macrobino, porém nada que pudesse revelar um espírito de
investigação e de ciência, um verdadeiro espírito da busca do
saber. O mais surpreendente, é que nem as traduções do grego para
o latim foram realizadas. Nem Platão, nem Aristóteles, nem
Euclides, nem Arquimedes, jamais foram traduzidos para o latim,
durante a época clássica.”
A retomada das relações entre oriente e ocidente foi realizada
pelo mundo árabe medieval, que ao traduzir inúmeras obras do
patrimônio universal, se fixou mais na herança helênica e manteve
em língua árabe todo o saber do mundo antigo. A retomada de contato
com o pensamento antigo, foi que impulsionou o desenvolvimento da
filosofia medieval. Na Idade Média, o oriente não era mais grego,
era árabe. “Assim, foram os árabes os mestres e educadores do
ocidente latino”.
Terceira questão: ”Qual foi a real contribuição do mundo
árabe medieval à História do Pensamento Científico moderno?”
Ao responder a esta questão, estarei desenvolvendo todo o
percurso da trama de retomada das relações entre Oriente e Ocidente
que foi realizada pelo Mundo Árabe Medieval.
Quando em754, os Abassidas tomaram o poder dos Omaíadas, o mundo
árabe perdeu sua hegemonia. Construíu ainda a sua idade de ouro,
porém 100 anos depois, teve início seu declínio, cujas
conseqüências nós seus herdeiros, estamos até hoje pagando o
tributo.
Se por um lado, a divergência Omaíada - Abassída foi negativa e
letal para o mundo árabe em geral, ela ainda assim, pôde ser
extremamente benéfica para o mundo ocidental.
A contribuição árabe oriental, isto é, a chamada idade de ouro
da civilização árabe, foi desenvolvida pelo califado Abassída.
Porém, foram os Omaíadas que transportaram a língua árabe com
todo o acervo cultural da região Síria à Espanha.
O Império Árabe Ocidental, teve início na Espanha em 756,
quando Abd Al Rahman I funda o emirado Omaíada de Córdoba. Para o
Ocidente, a importância deste período.
É muito mais intensa, pois foi a partir da Espanha muçulmana
que partiu a cultura árabe, interpretando a cultura cristã dos
princípios da Idade Média e produzindo a civilização de hoje
A disputa de poder entre Abassídas e Omaíadas teve como aliado
dos Abassídas Carlos Magno inimigo natural de Abd AL Rahman I, Emir
da Espanha.
A disputa entre vizinhos, foi vencida pelo Emirado Árabe
Ocidental, alcançando a primasia sobre Francos em uma batalha em
778.
Consolidado e pacificado o reino de, Abd Al Rahman I, passou a
interessar-se pelas artes da paz, onde pode ser tão grande como a
guerra.
Teve inicio aí a construção da Espanha:
- Embelezou as cidades sob o seu domínio;
- Construiu um aqueduto para fornecer água pura à capital.
- Iniciou a construção de uma muralha ao redor da cidade.
- Erigiu para si um palácio e um jardim similar ao palácio da
Síria.
- Canalizou água para a sua residência, onde introduziu plantas
exóticas como os pessegueiros e romaneiras. Importou palmeiras da
Síria a quem mimava com ternos e nostálgicos versos.
- A grande mesquita de Córdoba foi inaugurada dois anos antes de
sua morte, em 778- foi considerada o Santuário do Islamismo
Ocidental.
- Construiu a ponte do “Guadaquivir” (O Grande Rio).
Abd Al Rahman I, diligentemente procurou unir em uma única nação
árabe, sírios, berberes, numidas, hispano-árabes e godos. O início
do movimento intelectual que fez da Espanha islamítica dos séculos
IX ao XI, um dos grandes centros da cultura mundial, foi inaugurada
por ele.
No século X, o califado Omaíada na Espanha, sob o poder de Abd
Al Rahman chega ao seu apogeu. Córdoba passou a ser a cidade de
maior cultura da Europa e, ao lado de Constantinopla e Bagdá, um dos
três centros culturais do mundo.
-113 mil casas e 21 subúrbios;
-70 bibliotecas e inúmeras livrarias
-500 mil habitantes;
-700 mesquitas;
-300 casas de banho;
- quilômetros de ruas pavimentadas e iluminadas pelas luzes das
casas que lhe davam acesso.
A Espanha deste período era um país prospero e rico e possuía:
- 13mil tecelões;
-Florescente indústria de couro; Know How que depois exportou
para o Marrocos, França e Inglaterra.
- Teciam lã e seda. O bicho da seda foi trazido pelos mercadores
árabes da China para a Espanha.
- Louças, utensílios em cobre e cerâmica eram produzidas em
diferentes cidades espanholas.
-Ouro e prata eram extraídos em Jaer e Algarve.
-Ferro e cobre em Córdoba;
- Em Málaga, os Rubís.
- A arte da incrustração do aço e outros metais com o ouro e a
prata e decorá-los com desenhos florais foi importada de Damasco.
-A agricultura foi estimulada por novos métodos trazidos da Ásia
Menor;
-Cavaram canais, cultivaram vinhas e introduziram o arroz, o
damasco, a romã,a laranja, a cana de açúcar, o algodão, o
açafrão,..
- Sevilha importava, através de seu porto fluvial, tecidos e
escravos, e exportava algodão, azeitonas e azeites.
-O serviço postal regular era privilégio do povo da Espanha.
O período de Al Hakam, sucessor de Abd Al Rahman III se
notabilizou pela proteção à educação.
- Fundou 27 escolas livres em Córdoba.
Ao dar um conceito liberal aos estudiosos, fez com que a
Universidade de Córdoba ascender a uma proeminente posição em
relação às demais instituições do mundo.
Estudantes cristãos e muçulmanos foram atraídos para estudar
nela, não só da Espanha, mas de toda Europa, Ásia, e África.
Al Hakam ampliou a Mesquita que serviu de sede à Universidade e a
enriqueceu com novos adornos, contratou professores orientais para
ensinar nela, e destinou a eles verbas especiais para os salários.
A capital possuía uma grande biblioteca que foi enriquecida por
AL Hakam, já que ele era um grande bibliófolo; seus agentes
percorriam as livrarias de Alexandria, Damasco e Bagdad, com ordem
de comprar e copiar manuscritos. Os livros reunidos chegaram a
alcançar, segundo cálculos, 400 mil volumes.
O nível geral da cultura na Andaluzia era tão alto, nesta época,
que um estudioso holandês, Doseg, chegou a declarar que “quase todos
sabiam ler e escrever”.
Tudo isso acontecia enquanto a Europa cristã estava ainda
adormecida.
Como já foi visto, enquanto o Califado Árabe Oriental se
esmerava nas traduções das obras helênicas, persas e hindus seu
rival, o califado Árabe Ocidental seguia o mesmo percurso e bebia
da mesma fonte.
A retomada das relações entre Oriente e Ocidente se processou
graças à luta do poder Árabe que pode favorecer tanto ao Oriente
quanto ao Ocidente.
A Contribuição ao Ocidente
“Conhecer
é voltar-se para trás, é, por essência uma
regressão ao infinito”. (Wilhelm
Friedrich Nietzche)
Os portais das instituições educativas da Espanha muçulmana
ostentavam uma inscrição favorita:
“O mundo é sustentado por quatro coisas apenas:
a sabedoria dos sábios,
a justiça do grande,
as preces do justo e a
coragem do bravo”. (Hitty, 1948, pg.149)
Porém, nem a justiça, nem a fé, nem a coragem, foram as
virtudes que mais impressionaram a Europa; mas sim, a sabedoria
árabe, esta , impregnou o pensamento europeu por muitas vias.
“A Espanha maometana escreveu um dos capítulos mais brilhantes
na história intelectual da Europa medieval”. (Hitty, 1948, pg 149)
Entre os séculos VIII e XIII, como já foi assinalado, os povos
que falavam o árabe eram por todo o mundo os principais portadores
da tocha da cultura e da civilização, os agentes da ciência e da
filosofia antigas que foi por eles recuperados, aumentada e
transmitida, possibilitando assim o renascimento na Europa Ocidental.
As primeiras universidades do mundo não foram as de Paris,
Oxford, ou de Chartres; mas sim, as de Córdoba, Granada, Sevilha e
Málaga. A Universidade de Córdoba incluía entre seus
departamentos, os de astronomia, matemática e medicina, além de
teologia e direito. O número de alunos alcançava os milhares e eram
procedentes da Espanha, do norte da África e de outras regiões da
Europa.
A biblioteca que atendia à Universidade de Córdoba chegou a
possuir mais de 400.000 obras. Semelhante número de livros não
poderia existir se não houvesse a fabricação de papel local, que
entrou na Europa via a Espanha no século XII.
E foi no século XII que a Europa Latina viu florescer as
primeiras cidades e com elas as primeiras universidades.
O que era a Europa naquele período?
Conforme Jacques Le Goff: “quando o Ocidente não faz mais do
que exportar matéria prima – embora comece a despertar o
desenvolvimento têxtil- os produtos raros, os objetos de valor vêm
do Oriente, de Bizâncio, de Damasco, de Bagdad, de Córdoba.
Com as especiarias e a seda, os manuscritos trazem para o Ocidente
a cultura greco –árabe ” (s/d pg.33).
“...os caçadores cristãos de manuscritos gregos e árabes
desfraldaram as velas até Palermo, onde os reis normandos da Sicília
e depois Frederico II,com sua chancelaria trilingue – grega, latina
e árabe – animam a primeira corte italiana corte italiana
renascentista, precipitam-se sobre Toledo, reconquistada aos infiéis
em 1087, onde os tradutores cristãos puseram mão à obra, sob a
proteção do Arcebispo Raimundo (1125-1151)”(s/d pg. 33/34 Le
Goff).
“Os tradutores, eis os pioneiros deste renascimento. O Ocidente
já não entende o grego; Abelardo lamenta-o e exorta as religiosas
do Paracleto a preencherem essa lacuna, ultrapassando desta forma os
homens no domínio da cultura”
“A língua científica é o Latim. Originais árabes, versões
árabes de textos gregos, originais gregos, são, portanto,
traduzidos quer por indivíduos isolados, quer... por equipes” (
s/d pg.34 Le Goff)”.
O que impulsiona o Ocidente cristão primitivo, a estudar o árabe
e a traduzir o Alcorão?
A célebre equipe de Pedro, O Venerável, que traduziu o Alcorão,
ficou conhecida e seu objetivo era estudar o pensamento islâmico
para poder guerreá-lo.
Assim se expressa Le Goff “... Pedro, O Venerável foi o
primeiro a conceber a idéia de combater, não no terreno militar,
mas no terreno intelectual. Para recusar sua doutrina, é necessário
conhecê – la – e esta reflexão, que nos parece de uma evidencia
total, é uma audácia neste tempo de cruzada” (Le Goff- pg. 34-
s/d).
“No poder humano de transmitir, por meios sociais, sua ciência
e arte, reside o segredo da maior parte do que é nobre e duradouro
na civilização do homen.”(Hitty, 1948)
Não foi a esta realidade que assistiram os herdeiros da Espanha
muçulmana.
Após 2 de janeiro de 1942, data da queda de Granada, tem início
uma campanha para a queima e anulação do vestígio Árabe- islâmico
da Espanha. Granada foi o cenário de uma fogueira de manuscritos
árabes.
Neste mesmo período, após a queda de Constantinopla, quando o
Império Otomano assume o poder em todo o Oriente Árabe Sírio, a
biblioteca de Damasco foi inteiramente queimada e seus livros e
manuscritos todos se perderam.
Assim, permaneceu até os dias de hoje anônima a contribuição
árabe à medicina, matemática, astronomia, geografia, ótica,
filosofia....manteve-se viva e atuante até meados do século XVII e
XVIII, através das obras e compêndios trazidos para o Latim e o
inglês.
Na verdade, a contribuição européia à história da ciência
teve início justamente com o início do declínio árabe, isto é,
século XIV e XV.
Os últimos 500 anos, justamente aqueles que o V centenário do
Encontro de duas Culturas comemora, e ao qual estamos dando nossa
contribuição, foram os mais obscuros e deturpadores do conhecimento
humano.
O conjunto de monarquias e reinos que veriam a formar a Europa
atual, estavam vivendo o seu nascimento enquanto sociedades
organizadas.
Não resta a menor dúvida de que as Cruzadas tiveram como
resultado a anulação do traço árabe na Europa, e sua completa
negação como presença significativa no desenvolvimento e na
formação da Europa contemporranea, sem esquecer o papel do
conhecimento científico árabe na era dos descobrimentos, que
conduziram a Europa a uma expansão nunca antes imaginada.
Quem tentar encontrar um sinal da presença árabe na Europa, sua
contribuição para o Ocidente, ou quem tente entender o que são ou
que foram, encontra o deserto do saber- não há em nenhum livro
escolar, a não ser recordações simbólicas. Os professores, na
classe, falam do valor e da riqueza da cultura árabe. As pesquisas
que se fazem são desgastantes, pois pesquisamos 20 livros para
encontrar 10 frases. Os bons livros, quase sempre são obras raras e
de difícil acesso.
Hoje podemos responder à pergunta:
Porque os intelectuais do mundo são todos simpáticos à causa
árabe?
A resposta é simples: Estes intelectuais tem acesso a obras e
livros que o grande público ou mesmo o estudante secundarista não
tem acesso . O intelectual é um pesquisador e estudioso nato,
pesquisa por conta própria e na busca da origem do fato ou do texto
acaba por se chocar com o tabu, com o proibido e o escamoteado e para
o amante do saber, isto é um grande êxito e se transforma em um
novo desafio que o conduzirá a novos descobrimentos. Porém estes
conhecimentos continuam encaixotados, pouco utilizados, e sem
divulgação pois não trazem dividendos e não interessam a quem
fugiu deles durante V séculos.
Leão Kossovitch, citando Nietsche, diz: “....Só há criação
de valores aonde existem diferenças. É por isso que as forças
conspiradoras guerreiam contra a criação... o criador é a quem
mais odeiam: aquele que quebra tabus e antigos valores... a estes é
que chamam de criminoso...crucificam a quem escreve novos valores em
tábuas novas”.
São Paulo, agosto de 1991
Apresentado em espanhol, na Reunião de Fearab América -Damasco -
Síria por ocasião do início das festividades do “
V°Centenário do encontro de duas culturas”.
*Claude Fahd Hajjar, psicóloga psicanalista, autora do livro" Imigração Árabe 100 anos de Reflexão"
Diretora de Cultura de Fearab América e Coordenadora do "Vº Centenário do Descobrimento da América- Encontro de Duas Culturas" - (1990-1992)